"Eu sou deficiente. Você não? Eu sou. Descobri que tenho deficiência em paciência. É. Às vezes me pego irritada quando estou atrasada para um compromisso e meus filhos resolvem, justamente nesta hora – e não por acaso, demorar para calçar o tênis ou correr para o lado oposto de onde tenho que ir. Descobri que tenho deficiência em organização porque, se estou atrasada, é porquenão fui capaz de me adaptar ao imprevisto que gerou a quebra da programação. Então, descobri que sou deficiente em reconhecer minha capacidade porque, se a conhecesse, saberia meu limite e teria duas opções: trabalharia dentro dele ou me disporia a aumentá-lo. Então, descobri que tenho deficiência em coragem porque, se não conheço minha capacidade, não me conheço e, se não me conheço, é porque não olhei para dentro de mim e procurei o que me torna deficiente. Mas aí, quando a gente não olha para dentro, vem alguém de fora e te acerta no ponto. E dói. E aí não tem jeito, você passa a sentir a sua deficiência, tenha você consciência ou não dela.

Este alguém pode ser uma mãe, um pai, um amigo, o colega de trabalho ou, no meu caso, minha filha. Ela chegou trazendo consigo a experiência da Síndrome de Down, tida por muita gente como uma deficiência. E aí eu ganhei um espelho, e descobri que a limitação é minha, imposta por mim a mim mesma. Se eu fiquei ansiosa para ela aprender a se sentar, é porque eu não entendi que cada um de nós foi feito numa fôrma única, exclusiva e vai levar o tempo necessário para crescer por aqui. Se eu perdi as forças físicas porque a carregava no colo por mais tempo que o esperado, é porque eu criei expectativa, me frustrei e não me preparei para este trabalho. Se eu me irritei com as birras dela porque ela ainda não fala, é porque eu não tenho a compreensão necessária de entender que birra é manifestação de descontentamento, a única que ela poderia ter, já que ela ainda não fala. Se eu tive medo, o maior da minha vida, porque ela teve de operar o coração, é porque eu não entendia a justiça divina.

Então, eu tenho deficiência. E aprendi isso. É muito mais fácil colocar sobre o outro a responsabilidade de algo que nós é que não damos conta de fazer: “cansei de tentar ensinar que não pode isso, não pode aquilo, mas ele não entende, é limitado. Então, dá o pacote de biscoito antes do almoço, aí ele para”. É também muito mais fácil fugir da responsabilidade: “ele faz mais birra que outras crianças, é característica da Síndrome de Down. Fazer o que?”. Aqui, quero fazer parênteses: ouvi esta frase de uma pessoa responsável, em um órgão público, pela área da pessoa com deficiência. Sim! Agora, fecho os parênteses.

Voltando ao fugir da responsabilidade, quero dizer que tendemos a seguir fórmulas prontas que consideramos de sucesso. Claro, é um caminho já percorrido. Muito mais fácil mesmo. Mas precisamos estar atentos porque pode ser que esta fórmula não funcione. Numa empresa, talvez o case de sucesso sirva como inspiração, mas deva ser ajustável à realidade do negócio. Na culinária, talvez os ingredientes da receita tradicional precisem ser adaptados para o gosto local. Na família, talvez o coração deva falar mais alto e andar de mãos dadas com a criatividade. Assim, estaremos criando formas baseadas naquele famoso sexto sentido, e com amor. Aí estaremos buscando, dentro de nós, o que há de melhor, seja olhando para o que já temos de bom, seja reconhecendo o que ainda não é tão bom. Dessa forma, aquela deficiência, aquela imperfeição, aquele limite receberá nossa atenção e, então, poderemos trabalhar dentro dele ou nos propormos a aumentá-lo. A gente cresce dessa forma. E descobre que não existe deficiência. Descobre que falar em deficiência é pressupor padrões. Mas, se cada um é de um jeito, se cada um é diferente do outro, se nada é igual, então não há como adotarmos padrões engessados para o desenvolvimento humano, seja ele físico ou mental. Os modelos servem de inspiração, de caminho, mas precisam ser moldados, desenhados, utilizados conforme a necessidade de cada um de nós. Então, me arrisco a dizer que não existe deficiência na forma como a palavra é usada por aí. O que existem são oportunidades de enxergarmos o mundo de diferentes formas e, quem sabe, nos enxergarmos com lentes de aumento”.

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