Corra, Down, Corra

Só se é criança uma vez na vida
“- Bom dia!
- Que ‘bom dia’ o quê! Você está atrasado, sai logo dessa cama.
- Mas, calma, eu acabei de acordar. 
- Calma nenhuma, você já acordou atrasado. Vá tomar seu banho, que tem de ser em 3 minutos, hein? 
E você, sem nem pensar, sai correndo, toma banho, troca de roupa, ajeita mais ou menos o cabelo e senta pra tomar café.
- Café? Dá tempo de comer não, você começou atrasado a sua vida! 
- Mas eu gosto de tomar café com calma, despertar para começar meu dia bem.
- Não dá tempo não, você está atrasado, vai mastigando no caminho mesmo...
E você sai correndo, entra no carro e pega o caminho de costume.
- Este caminho é horrível, trava todo o trânsito! Entra à direita.
Você experimenta.
- Nossa, olha lá, tudo engarrafado. Tá vendo? Começou atrasado, agora vai atrasar tudo. Vira aqui à esquerda, aqui, aqui, vai logo!
- Mas não andei nem duas quadras, nem pude experimentar este novo trajeto pra ver se é bom.
- Meia quadra já é suficiente, vai por mim, tá travado, entra aqui...
E você? Vai... Vira aqui, tenta ali, experimenta acolá e chega ao trabalho.
- Ufa, você pensa. Agora terei um pouco de folga. 
- Folga? Você tá maluco! Nem pensar. O chefe pediu aquele trabalho pras 12h, você está atrasado, não vai dar tempo!
- Calma, eu consigo sim, me deixa respirar, eu me concentro e faço.
- Não, olha só, você nunca consegue nada no tempo certo, está sempre atrasado. Vamos lá! Tá vendo aquele cara ali na mesa do lado? Ele é mais rápido que você, vai passar na sua frente. Não pode!
E você, cede. Não consegue nem falar. E faz o trabalho. Olha no relógio, mas nem precisa, né, a fome e o estresse já te dizem que é hora de parar um pouco: almoço.
- Olha, tá bom, você merece esse descanso, vai. Mas, ó, 10 minutos!
- Que isso? Impossível! Até eu descer este prédio de 20 andares com elevador lotado no horário de pico, andar quatro quadras até o restaurante, fila pra fazer prato, fila pra pagar, vai pelo menos 30 minutos.
- Meu amigo, tá vendo o seu vizinho de mesa ali? Enquanto você almoça, ele trabalha. E você, fica a-tra-sa-do!
Você sai correndo, passa na frente de todo mundo, pede ajuda, faz o que pode. No meio do caminho, toca seu celular. Sua esposa conta que sua filha não passou no vestibular. Você conversa, diz que tudo bem, que tem uma vida pela frente pra entrar numa universidade, que a vida dela está apenas começando...
- Ixi, já era! Não passou? Atrasou um ano! Quando ela entrar, a amiga dela já estará se formando; quando ela se formar, a amiga já estará na especialização... Vai viver atrasada.
- Mas, olha, ela é muito nova, que diferença faz na vida dela um ou dois anos?
- HAHAHAHAHAHA. É por isso que todo mundo passa mesmo na sua frente. Olhe em volta, você perde tempo.
- Escuta aqui, que diferença faz se uma criança deixa as fraldas aos 2 ou 2 anos e meio? Que diferença faz se ela anda com um ou com dois anos? Que impacto tem na vida de um adolescente se ele entra na faculdade aos 19 ou 21 anos? Quer concorrer com quem? Quer disputar com quem? Quer provar o que e pra quem?

É assim que uma criança com Síndrome de Down pode se sentir quando é sufocada em terapias por famílias que querem porque querem que elas acompanhem o desenvolvimento de crianças típicas – contra a vontade, inclusive, de muitos profissionais da área - sob a falsa de ideia de que ela é atrasada. Slow down, meu amigo. Desacelere. Um dia perdido, não é um ano, como eu já ouvi muito por aí. Um ano perdido, não é uma vida! Aliás, nada é perdido, tudo é oportunidade para aprendermos e crescermos. Terapias são importantes? Sim, muito! Deixe uma criança típica trancada em casa e veja se ela se desenvolve. Claro que não! Toda criança precisa de estímulo. A criança com down também precisa. Fisioterapia, fonoaudiologia, terapia ocupacional, tudo é importante, mas precisa haver equilíbrio. Se pesar demais a balança de um lado, ela tomba, não cumpre com sua função. Portanto, sinta se seu filho está feliz. 

São muitas as linhas de trabalho e a escolha de uma ou de outra vai depender do perfil de cada família e de cada criança. Primeira dica: escolha um profissional que ama o que faça! Já é meio caminho andado. Quando experimentar as terapias, dê tempo para que a criança responda ao estímulo e avalie a resposta. Se precisar, mude, claro, mas sem afobação. Ela vai chegar lá. Todos aprendem a andar, a falar, a conhecer o mundo. Seu filho também vai! Se você gosta de ter um parâmetro, ótimo, é saudável! Precisamos mesmo ter objetivos no sentido de termos um norte para percorrer um caminho. Só que é importante pensarmos como queremos percorrê-lo, se de forma leve ou pesada. Não faça seu filho um escravo de metas, e nem você mesmo, porque você e ele poderão ter um caminho de sofrimento, com frustração de expectativas. Você aguentaria viver assim a sua vida?

Nós precisamos aprender que o tempo varia de pessoa para pessoa, e respeitar isso. É assim: nós duas somos ótimas em fazer pão. Pegamos a mesma receita. Eu a faço em 50 minutos. Você, em 30 minutos. Por quê? Talvez porque, pra mim, sovar a massa seja mais difícil. Entende? Em algum ponto haverá mais ou menos dificuldade para um do que para o outro. Seu filho com down pode acompanhar o desenvolvimento motor de uma criança típica, mas pode ser que, na fala, ele leve mais tempo do que esse padrão que você adotou. E tudo bem. Ele vai falar, quando ele tiver maduro o suficiente para isso. Se você tentar acelerar um carro além do que ele aguenta, ele quebra. Se você mantiver uma boa aceleração, compatível com aquele modelo, o rendimento é excelente. Qual deles vai completar a corrida? Percebe? É igual!

Estimule seu filho sim, sempre, dentro do limite dele, garantindo seu bem-estar, sua felicidade. Mas deixe reservado um tempo para ele correr no parquinho, tomar banho de chuva, brincar de esconde-esconde embaixo da cama ou curtir preguiça no sofá com a família. Só se é criança uma vez na vida! / Camila Castro / Blog Um em Mil”. 

#PraTodosVerem: Giovanna com 2 anos de idade pintada de tinta azul dos ombros aos pés, sentada sobre tapetes de EVA coloridos com tinta azul espalhada, rindo com os olhinhos fechados e batendo palmas. Ela se pintou. Ao redor delas, pincéis e tintas.

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